Até que o mundo esportivo parasse por causa do surto de coronavírus, talvez o maior problema dos esportes profissionais nos Estados Unidos fosse o escândalo de trapaça do Houston Astros. As revelações do esquema levaram Rob Manfred, o comissário da liga de beisebol, a MLB, a emitir um aviso a todos os 30 donos de clubes de que havia uma “cultura de trapaça” no jogo.

Mas a má conduta do beisebol não deixa nada a dever à do xadrez. Nos torneios ao vivo de prestígio e nos milhares de outros sendo disputados diariamente on-line, a trapaça é um flagelo.

Seja uma campainha secreta implantada em um sapato, um smartphone escondido no banheiro, um sabor particular de iogurte entregue em um momento chave – ou apenas jogadores on-line usando programas de xadrez computadorizados –, o xadrez talvez tenha mais trapaça do que qualquer outro jogo no mundo.

“Claro que é um problema. Porque, com todos os avanços da tecnologia, há sempre uma possibilidade. As pessoas têm mais chances e oportunidades de fazer esse tipo de coisa”, disse Leinier Domínguez, nascido em Cuba e atualmente em primeiro lugar no ranking dos Estados Unidos.

Tanto no xadrez quanto no beisebol, casos reais ou rumores de trapaça já existem há décadas, mas uma explosão de tecnologia e dados nos últimos 10 a 15 anos dificultou a contenção do problema em ambos os casos.

O esquema do Astros, que ajudou a equipe a obter o título da World Series de 2017, envolveu decifrar ilegalmente os sinais de apanhadores adversários por meio de uma transmissão de vídeo ao vivo e, em seguida, bater em uma lata de lixo para sinalizar o próximo arremesso para o batedor. A MLB está agora lutando para evitar esquemas semelhantes no futuro.

No xadrez, os jogadores em torneios ao vivo agora são obrigados a deixar seu telefone para trás e passar por detectores de metais antes de entrar na área de jogo. Alguns tiveram até de tirar peças de roupa e foram revistados. E alguns torneios agora colocam os jogadores atrás de espelhos para limitar a comunicação visual.

Mas, como o Astros, muitos enxadristas ainda tentam.

No ano passado, um grande mestre chamado Igors Rausis foi pego examinando um smartphone no banheiro em um torneio na França. Em 2015, Gaioz Nigalidze, da Geórgia, foi barrado por três anos pela Fide, o órgão global de xadrez, e teve seu status de grão-mestre revogado por causa do mesmo delito.

A comissão antitrapaça da Fide intensificou recentemente seus esforços para combater o problema. O grupo, que se reuniu em fevereiro, resolveu dar apoio financeiro às federações nacionais, que precisam dessa ajuda para eliminar a trapaça, e vai compartilhar técnicas de detecção com plataformas de xadrez on-line. No momento, 20 casos estão sendo investigados.

“Os trapaceiros estão ganhando há muito tempo. Mas nos últimos meses mostramos nossa determinação em combatê-los e acho que as pessoas percebem que isso é sério”, declarou Arkady Dvorkovich, presidente da Fide, em uma entrevista por telefone de Moscou.

Em 2013, Borislav Ivanov, um jovem jogador da Bulgária, foi essencialmente forçado a se aposentar depois que se recusou a tirar os sapatos para a busca de um dispositivo eletrônico que poderia ser usado para lhe transmitir sinais. O dispositivo nunca foi encontrado – Ivanov teria se recusado a tirar seus sapatos porque, segundo ele, suas meias estavam muito fedidas –, mas ele se aposentou após o torneio.

Há jogadores que trapaceiam ao jogar mal em disputas internacionais para se qualificar para um torneio menor e ganhar o prêmio em dinheiro. Há alguns que criam contas falsas on-line, aumentam o perfil dessa conta e então a derrotam para melhorar sua própria classificação. Às vezes, os oponentes combinam um resultado e dividem o dinheiro do prêmio.

Em 1978, Viktor Korchnoi acusou Anatoly Karpov de trapacear com iogurte. Depois que Karpov recebeu um iogurte de mirtilo de um garçom durante o jogo, Korchnoi deduziu que o sabor era um sinal de alguém de fora.

Korchnoi mais tarde alegou que sua acusação era uma piada, mas as autoridades a levaram a sério, acabando por exigir que a mesma comida fosse entregue a ambos os jogadores em um momento predeterminado.

“Parece loucura, mas é uma preocupação legítima, porque há muitas maneiras de ajudar um jogador”, disse Gerard Le-Marechal, monitor em tempo integral e detetive antitrapaça do Chess.com, uma das maiores plataformas de xadrez on-line do mundo.

Ele é uma das seis pessoas empregadas pelo site para combater a trapaça. Elas se baseiam em algoritmos de dados estatísticos, e Le-Marechal diz que recebe alertas ao longo do dia sobre trapaceiros – muitos amadores, alguns profissionais e até ocasionalmente um grão-mestre.

Durante uma entrevista por telefone de 40 minutos, pelo menos três avisos foram ouvidos ao fundo, e Le-Marechal informou que todos eram alertas de trapaça.

Daniel Rensch, ex-campeão júnior e um dos donos do Chess.com, contou que sua equipe de detecção de trapaças havia consultado torneios ao vivo para ajudar a impedir essas ações. Há pouca dúvida, disse ele, de que dispositivos hápticos já tenham sido usados.

A ideia é que, enquanto uma pessoa joga, outra observa de um local remoto e inclui inúmeros possíveis movimentos em um mecanismo de xadrez computadorizado. Em seguida, o cúmplice sinaliza os melhores movimentos futuros para o jogador por meio do dispositivo háptico, que envia um sinal codificado ao jogador.

Um grande jogador não precisa necessariamente ser informado da jogada exata. Em alguns casos, o sinal pré-arranjado poderia simplesmente ser: há um movimento vencedor aqui. Os grão-mestres são hábeis o suficiente para encontrá-lo.

Durante as investigações de sua equipe, relatou Rensch, uma fonte experiente indicou que pequenos receptores eletrônicos de fones de ouvido, do tamanho de uma bolinha de pimenta-do-reino, estavam sendo usados para trapacear no xadrez. Os insidiosos dispositivos em miniatura, que são comercializados on-line para estudantes com o propósito expresso de colar nos exames, são tão pequenos que não podem ser detectados.

Mas Rensch está mais preocupado com o flagelo da trapaça on-line em sua plataforma. Desde que o computador da IBM, o Big Blue, venceu o campeão mundial Garry Kasparov em 1997, dispositivos computadorizados de xadrez cada vez mais poderosos têm facilitado a trapaça.

“Está muito pior agora. Você tem esse deus todo-poderoso que pode lhe dizer tudo. É muito tentador para todos”, disse Le-Marechal.

Cerca de dez anos atrás, quando amadores venciam grão-mestres e a trapaça desenfreada ameaçava a legitimidade do xadrez on-line, Rensch e seus companheiros do site realizaram uma reunião sobre o tema. Naquele momento, estavam hospedando um milhão de jogos por dia – agora são 3,5 milhões – e alguém sugeriu que poderia não haver nada que pudessem fazer para conter a contravenção.

“Só o fato de dizer isso em voz alta já foi o suficiente para nos deixar ultrajados. Pensamos: ‘Não! Temos de fazer alguma coisa’”, contou Rensch.

O site também sedia torneios por dinheiro, tornando a detecção de fraudes ainda mais fundamental. Assim, os membros da equipe desenvolveram programas de computador que mineram dados estatísticos para provar a trapaça, o que, segundo eles, salvou o jogo on-line. Muitas vezes eles nem sabem como alguém está trapaceando, mas podem provar que isso está acontecendo com base em irregularidades nos movimentos ao longo do tempo.

Rensch revelou que eles fecham às vezes dezenas de milhares de contas por mês, incluindo algumas de profissionais e grão-mestres.

Eles também podem detectar irregularidades em partidas ao vivo. De acordo com Le-Marechal, eles sabiam sobre Rausis meses antes de ele ser pego no banheiro na França no ano passado. Até mesmo alguns profissionais – que a equipe de Rensch preferiu não nomear publicamente – confessaram, desculparam-se e se perguntaram como foram pegos.

“Não me importo com o método que você usa. Tudo o que estou dizendo é que o que você está fazendo não é razoavelmente possível com base nos dados que tenho, e eu ganharia a causa no tribunal”, disse Rensch.

REFERÊNCIAS: EXAME ABRIL

FOTO DA CAPA: Pete Ryan/The New York Times

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Sobre o Autor

Paulo Silva
Paulo Silva

Criador da plataforma Xadrez Forte. Graduado em Engenharia Florestal e discente de Ciência da Computação. No xadrez, atua como jogador, professor e árbitro regional de xadrez filiado à Federação de Xadrez do Amapá.

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